Memórias #1 — Césio 137

Episódio do podcast Vida de Jornalista republicado em 27/10/2021, publicado originalmente em 2019. Aqui a transcrição na íntegra

Vida de Jornalista
27 min readOct 26, 2021

Por Rodrigo Alves

Card quadrado do episódio: fundo preto, com um pequeno montinho de pó azul brilhante (o Césio) na parte de baixo, pegando quase toda a metade de baixo da imagem. No alto, a inscrição Memórias em letras brancas grandes brilhantes, e logo abaixo a inscrição Césio 137, por Cileide Alves. No cantinho direito inferior, símbolos do Vida de Jornalista (quadrado, com bordas azuis e o nome do podcast em fundo branco) e da Rádio Guarda-Chuva (silhueta de um guarda-chuva).

O episódio em áudio está em todos os tocadores de podcast (Orelo, Deezer, Spotify, Apple, Castbox, Amazon, Google etc, basta buscar por Vida de Jornalista). Esta é a republicação em 2021, com nova abertura, som remasterizado e locuções regravadas com qualidade melhor. A série Memórias foi publicada originalmente em 2019. Segue a íntegra do roteiro, com a transcrição completa de tudo que é falado e tocado durante o episódio.

[INÍCIO DO EPISÓDIO]

[LOCUÇÃO]

Oi, tudo bem? Eu sou o Rodrigo Alves, e só pra te dar um aviso, esse episódio foi publicado originalmente em agosto de 2019, abrindo a série Memórias, uma série narrativa do Vida em oito episódios com bastidores de coberturas históricas. Eu tô republicando esses episódios agora, mais de dois anos depois, primeiro porque muita gente chegou recentemente e nem sabe que rolou essa série, e também porque em janeiro a série Memórias vai ter uma nova leva de episódios inéditos. Então vale como um aquecimento. Esse episódio republicado agora é igualzinho ao de 2019 no conteúdo, mas eu dei uma tratada no áudio. E eu regravei todas as locuções. O texto é o mesmo, só mudei uma outra coisinha, mas o áudio tá com uma qualidade melhor. Ajustei os volumes, dei uma ajeitada geral, então se você já ouviu o episódio de 2019, depois me conta se você curtiu a versão remasterizada. E se você não ouviu a série, seja bem-vinda, seja bem-vindo. O episódio 1 é sobre o acidente radiológico com o Césio 137, em Goiânia, em 1987. Vamos nessa?

[VINHETA RÁDIO GUARDA-CHUVA]

[Voz feminina acompanhada do som de um guarda-chuva abrindo]

O Vida de Jornalista tem o selo da Rádio Guarda-Chuva. Jornalismo para quem gosta de ouvir.

[SOM DO MEDIDOR DE RADIAÇÃO]

- Um bip acompanhado de um som de eletricidade.

[ÁUDIO REPORTAGEM]

- Repórter: Em Goiânia, uma multidão entrava em pânico com a história do pó que contaminava.

- Tia da Leide: Na hora em que eu cheguei lá, ela falou: titia, vem ver a pedrinha lumiante que o papai trouxe. Eu entrei, ela mesma apagou a luz. Na hora que eu entrei, aquilo brilhava.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Memórias, uma série do podcast Vida de Jornalista. Aqui a gente volta ao passado pra reviver coberturas históricas do jornalismo brasileiro, conversando com quem esteve lá. No episódio de hoje, a cobertura do acidente radiológico com o Césio 137 em Goiânia, em setembro de 1987. E a nossa convidada é a jornalista Cileide Alves.

[CILEIDE ALVES]

E eu chegava em casa com essa dúvida. Será que eu posso pegar meu filho? Será que eu posso abraçar meu filho? E aí a minha família, minhas irmãs, minha mãe, ficava todo mundo com medo, e eu tinha que acalmá-las. Eu tinha que dizer pra elas que tava tudo sob controle. Mas ao mesmo tempo ninguém acreditava que tava sob controle.

[LOCUÇÃO]

Se você assistiu à série Chernobyl, da HBO, que foi um dos grandes sucessos de 2019, então você lembra bem o que aconteceu na Ucrânia em 1986. Era pra ser um teste de segurança numa usina nuclear na antiga União Soviética, mas um reator explodiu, numa combinação de erros que causou o maior desastre nuclear da história. Até hoje não se sabe exatamente o número de vítimas, cada órgão diz uma coisa. Mas o fato é que dois funcionários morreram na noite da explosão, cerca de 30 bombeiros contaminados morreram logo nos primeiros meses. E o legado da radiação nos anos seguintes é devastador, com milhares de pessoas por exemplo desenvolvendo câncer. A Organização Mundial da Saúde fala em 9 mil mortos por efeito da contaminação. Mas o Greenpeace por exemplo contesta essa informação e leva esse número pra quase 100 mil.

[LOCUÇÃO]

Tudo isso aconteceu em 1986 e, um ano depois, o Brasil teve a sua versão de Chernobyl.

[SOM DO MEDIDOR DE RADIAÇÃO]

- Um bip acompanhado de um som de eletricidade.

[LOCUÇÃO]

O acidente com o Césio 137 em Goiânia, em setembro de 1987, não teve o mesmo impacto da catástrofe soviética, claro, tanto no número de vítimas como na questão ambiental, mas até hoje é considerado o maior desastre radioativo do mundo fora de uma usina nuclear. Já se vão mais de 30 anos, e até hoje tem muita gente sofrendo os efeitos daquele pozinho branco que ficava azul no escuro. Um pozinho encontrado por dois catadores dentro de um aparelho de radioterapia numa clínica abandonada.

[LOCUÇÃO]

A gente vai contar melhor essa história a partir de agora, mas nesse episódio, assim como em todos os episódios da série Memórias, a gente vai lembrar a cobertura da imprensa naquele caso. É uma cobertura quase no escuro, porque os repórteres sabiam muito pouco. As autoridades também sabiam muito pouco. Não se sabia nem exatamente qual era o risco de contaminação pros próprios jornalistas.

[LOCUÇÃO]

Para recordar essa cobertura e esse clima de dúvida, até de medo, né, eu vou conversar com a Cileide Alves, que cobriu o caso em 87. Ela tava no início da carreira como repórter da TV Brasil Central, que era uma retransmissora da Band, depois virou afiliada da TV Cultura. E depois desse caso, a partir de 89, a Cileide foi construindo uma carreira muito respeitada no jornal O Popular. Foi repórter, subeditora e editora de Política. Depois foi colunista, editora executiva, editora-chefe do jornal. Hoje ela segue como colunista e também é apresentadora na Rádio Sagres. A nossa conversa foi pelo Skype.

[EFEITO SKYPE]

- Musiquinha da chamada

[ÁUDIO DA CHAMADA]

- Rodrigo Alves: Tem muito tempo que eu morei em Goiânia, eu já morei em Goiânia.

- Cileide Alves: Ah é?

- Rodrigo Alves: Eu era muito criança, tinha 6 anos, 7 anos.

- Cileide Alves: A cidade mudou muito, viu?

[EFEITO SONORO]

- Som de carros passando numa estrada.

[LOCUÇÃO]

E as lembranças da Cileide começam numa estrada indo de Goiânia pra Brasília numa segunda-feira, dia 28 de setembro de 87. Ela tava indo cobrir uma reunião do governador de Goiás na época, o Henrique Santillo. Só que numa parada no meio da viagem, ela ligou pra redação.

[EFEITO SONORO]

- Porta do carro batendo.

[LOCUÇÃO]

Aí a pauta caiu e começou a cobertura mais marcante da vida dela.

[CILEIDE ALVES]

Brasília fica a 280 quilômetros de Goiânia aproximadamente. Na época não tinha telefone celular. A gente saía com a pauta e aí a gente ligava pra saber, pra confirmar o horário da reunião, o local, esses detalhes que você tem que falar na redação. E eu parei em Alexânia, que é o município que fica mais perto de Brasília, o município goiano mais perto de Brasília. E liguei na redação. Quando eles me disseram que o Santillo cancelou a ida dele a Brasília porque tinha havido um problema em Goiânia e era um problema que eles não sabiam dizer ao certo que era, mas por conta disso ele teve que cancelar. Isso foi de manhã, por volta de 8h da manhã, a reunião era mais ou menos às 10h, 11h. Eu voltei pra Goiânia, só passei na redação, estava tudo normal. Fui embora pra casa. Nesse dia, a Miriam Tomé era jornalista da TV Anhanguera. A TV Anhanguera é a transmissora da Globo aqui em Goiânia, do grupo Jaime Câmara. A Miriam estava entrevistando o secretário de saúde de Goiás, o Antônio Faleiros. Na hora da entrevista o Faleiros recebeu uma informação de que tinha um grupo de pessoas passando mal, que essas pessoas estavam com alguma contaminação, os médicos achando que elas tinham comido qualquer coisa que tivesse feito mal pra elas, e que eles estavam avaliando o caso. E eles entram em contato com ele, e aí ele comenta com a repórter que ele tinha que sair porque ele tinha que resolver esse assunto. Ela pergunta o que era, e ele conta que era uma família que morava lá no no setor Aeroporto. Era o ferro velho do Devair, né? A Miriam foi. Aí ela chegou lá e encontrou com a Gabriela, entrevistou a Gabriela, entrevistou o Devair, foi na casa do lado.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Miriam: O que o senhor está sentindo hoje?

- Devair: Ah, não tenho nem o que te falar. Se eu comer um quilo de sal ou um quilo de açúcar, é a mesma coisa.

- Miriam: Não sente gosto nenhum?

- Devair: Nada. Além de tudo quebrado, os dentes aqui arrebentando.

- Gabriela: O irmão dele pegou uns farelinhos e pôs no corpo, aí deu ferida. Ela queimou as pessoas.

- Miriam: E a senhora resolveu levar para a Vigilância Sanitária?

- Gabriela: Levei pra Vigilância Sanitária examinar, pra gente saber, pra sarar logo.

[CILEIDE ALVES]

Isso ninguém sabia que essas pessoas estavam contaminadas com radiação.

[LOCUÇÃO]

A Cileide já citou alguns personagens que a gente vai situar direitinho, porque esse momento foi quando as autoridades e a imprensa descobriram o caso. Só que a história do acidente com o Césio na verdade já tava se desenvolvendo quase três semanas antes.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

No dia 10 de setembro de 87, ou seja, 19 dias antes do início da cobertura da imprensa, dois catadores, o Roberto Alves e o Wagner Pereira, tavam procurando material dentro de uma antiga clínica, o Instituto Goiano de Radioterapia, que tinha sido desativado dois anos antes, então era um prédio abandonado. Eles encontraram ali um aparelho de radioterapia que estava ali largado no prédio e acharam que aquilo podia render algum dinheiro. Então eles levaram, ficaram três dias circulando com aquele equipamento num carrinho de mão. Era uma máquina pesada de, sei lá, 200 quilos. E no dia 13, na casa do Roberto, eles finalmente conseguiram romper o cabeçote do equipamento. Eles chamavam esse cabeçote de marmita. E lá dentro da marmita tinha uma cápsula, onde estava armazenado o Césio 137.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Homem: Essa casa aqui é a casa que foi desmanchada a pedra lá dentro dela.

[LOCUÇÃO]

Você já deve ter ouvido falar em Césio, mas não custa nada explicar o que é o Césio exatamente. É um elemento químico que tem muitos isótopos. O isótopo é uma variação do elemento. O Césio é o segundo elemento químico que tem mais isótopos, são mais de 30. E um deles é o Césio 137. Tem o 133, 134, 135. O 137 é um isótopo radioativo usado por exemplo no tratamento do câncer. Ele tem um poder enorme de contaminação, então é um pozinho que não pode ficar exposto de jeito nenhum.

[SOM DO MEDIDOR DE RADIAÇÃO]

[LOCUÇÃO]

E como a cápsula tava com o lacre rompido, de tanto eles baterem ali, o Roberto e o Wagner, os catadores, no mesmo dia eles já começaram a passar mal, com náusea, vômitos, diarreia. Mas ali ninguém sabia de nada. O diagnóstico inicial era uma intoxicação alimentar, uma coisa ali corriqueira. A cápsula ficou do dia 13 até o dia 18 na casa do Roberto. Aí eles venderam a peça pro ferro velho do Devair Ferreira. E os funcionários do Devair conseguiram desmontar a peça. Foi aí que a substância ficou totalmente exposta.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Visualmente o Césio 137 parece sal. Sal de cozinha, branco, mas no escuro ele ganha um brilho azulado que chama muita atenção. E de noite, o Devair, vendo aquele brilho esquisito ali no ferro velho dele, ficou encantado com aquele negócio.

[ÁUDIO REPORTAGEM]

- Odesson: Ele tinha uma frase, deixou uma frase…

[LOCUÇÃO]

Esse é o Odesson Alves Ferreira, irmão do Devair, numa declaração ao programa Linha Direta Justiça, que reconstituiu o caso em 2007.

[ÁUDIO REPORTAGEM]

- Odesson: Deixou uma frase: Eu me apaixonei pelo brilho da morte. Então ele se apaixonou realmente por aquela peça, por aquele material.

[LOCUÇÃO]

O Odesson Alves visitou o Devair e a esposa dele, a Maria Gabriela. E ele pegou um pouco do Césio, botou na palma da mão, esfregou.

[EFEITO SONORO]

- Esfregando o Césio na mão.

[LOCUÇÃO]

E como era de dia, não teve o brilho azul, né? Então ele não se interessou muito, deixou pra lá. Mesmo assim, por causa disso ele ficou meses internado, criou uma deformação na mão que ele tem até hoje e teve que amputar parte de um dedo. No dia seguinte, o outro irmão do Devair, o Ivo, também foi lá ver o Césio. E, pior, pediu pra levar um pouco pra casa. Chegou em casa de noite, mostrou pra filha, que se chamava Leide das Neves, tinha 6 anos. Eles botaram o pó embaixo da cama, ficou tudo iluminado no escuro. A Leide obviamente adorou aquilo. E ela foi a vítima mais marcante daquele episódio.

[CILEIDE ALVES]

Ela achou o pó tão bonito, ela ficou tão encantada com aquele pó que ela brincou com ele. Depois a mãe fez um lanche pra ela, cozinhou um ovo. Ela pegou o ovo com a mãozinha suja do pó. E aí ela comeu esse ovo. Então ela foi o único caso de ingestão, né? Ela comeu o Césio.

[EFEITO SONORO]

- Cymball, prato de bateria

[LOCUÇÃO]

A gente vai falar mais sobre a Leide. Mas antes vamos voltar pro depoimento da Cileide Alves, porque naquele dia em que começou a cobertura, a cápsula do Césio tinha sido levada pra ser analisada pela Vigilância Sanitária. E quem levou foi a Gabriela, a mulher do Devair, dono do ferro velho. A Gabriela ficou cabreira com aquele negócio de, do nada, todo mundo ficar doente.

[CILEIDE ALVES]

A Gabriela notou que as pessoas começaram a passar mal depois que aquela peça chegou na casa dela. E aí ela chama dois outros catadores que trabalhavam lá com ela, esses dois trabalhavam com ela…

[EFEITO SONORO]

- Som de ônibus

[CILEIDE ALVES]

E foi com os dois, ela mais os dois. Eles pegaram um ônibus na Avenida Independência e foram até a Vigilância Sanitária, que ficava também no setor Aeroporto. E ela levou num saco de linhagem, aqueles sacos antigos de linhagem. E até uma foto muito bonita que é do repórter Lorisvaldo de Paula, é uma foto muito bonita que é um saco de linhagem. Preta e branca a foto, naquela época se fazia foto preta e branca. Em cima de uma cadeira, tipo uma cadeira de escola. O Lorisvaldo de Paula já morreu, ele sofreu um acidente de trânsito depois e morreu. Mas ele contava que ele chegou, a peça estava lá em cima, e as pessoas disseram pra ele que ele podia abrir o saco. Mas ele disse que não sabe porque, ele não abriu o saco. Ele fez a foto com o saco de linhagem fechado. E depois o editor de fotografia do Jornal O Popular, que também já morreu, o Hélio Nunes, que era um excelente fotógrafo, o Hélio inclusive deu uma bronca no no Lorisvaldo. Por que é que o Lorisvaldo não abriu o saco, não pegou a peça, né? O Lorisvaldo fez essa foto. Então nesse dia todo mundo chegou perto. Todos os jornalistas, né? A Miriam da TV Anhanguera, o Lorisvaldo do O popular, a Laine Thomé, que era repórter do O Popular que estava com o Lorisvaldo. Quer dizer, todo mundo chegou perto, os funcionários da Vigilância Sanitária, porque ficou numa sala lá na entrada da Vigilância Sanitária. Então as pessoas passando mal, e aí alguém teve a ideia de chamar um físico. E tinha um físico que trabalhava se não me engano na Universidade Federal, o Walter Mendes. Chamaram o Walter. E o Walter foi com um contador de geiger. Na hora que o Walter chega, o contador gira, né?

[EFEITO SONORO]

- Som do medidor de radiação, um bip repetido.

[LOCUÇÃO]

A Cileide vai citar agora a Cnen, que é a Comissão Nacional de Energia Nuclear, uma agência do governo responsável por todo o programa nuclear do país.

[CILEIDE ALVES]

O governo de Goiás entrou em contato com a Cnen, e aí a Cnen manda do Rio pra Goiânia os primeiros técnicos pra avaliarem. E entre eles chegou o José de Júlio Rosental, um físico da Cnen que era o responsável por essa área de fiscalização desse material de clínicas radiológicas. E aí quando eles viram, que eles viram que realmente aquilo era um material radioativo, eles começam a dar as instruções pra cercar o material, fechar aquilo. E aí essas famílias, eles que foram lá nas casas no ferro velho do Devair, na casa do Roberto e do Wagner lá na rua 57, nos vizinhos, e foram identificando através do contador aqueles que estavam contaminados. Aí pegam as famílias e levam pro ginásio Rio Vermelho e isolam as pessoas lá. E foram 4 mil levadas. Então na terça-feira, quando eu chego na televisão, já eram essas imagens.

[RODRIGO ALVES]

Quer dizer, tudo isso que você está contando, essa história lá da foto na cadeira, o jornalista, tudo isso foi nesse primeiro dia de cobertura, essa segunda-feira?

[CILEIDE ALVES]

Exatamente, nesse primeiro dia de cobertura. E aí essas cenas que pareciam inimagináveis pra gente. A gente não sabia o que era aquilo. As pessoas usando aqueles macacões brancos de capuz, aquilo pra gente era absolutamente incompreensível né? E aí foram as histórias. Nesse dia eu cheguei de manhã na televisão, eu lembro desse dia, que eu comecei a fazer a cobertura. Eu não lembro o dia que eu terminei.

[MÚSICA]

[RODRIGO ALVES]

O quanto vocês tinham de informação na cabeça sobre o que tinha acontecido um ano antes em Chernobyl? Eles faziam comparações sobre os dois casos?

[CILEIDE ALVES]

Faziam. A gente tinha um medo muito grande, porque a gente tinha acompanhado pela imprensa o que tinha acontecido em Chernobyl. Chernobyl era e continua sendo o maior desastre nuclear do mundo, né? A gente ficou muito assustado, porque a referência que se tinha era aquela, não tinha outra. Não existia outra referência. Isso a gente sabia que era muito grave. Mas depois que eu li o livro da Svetlana…

[LOCUÇÃO]

A Cileide falou bastante desse livro durante o nosso papo. É um livro referência nesse assunto, se chama Vozes de Chernobyl, da da Svetlana Alexjevich, uma jornalista bielorrussa que ganhou o Nobel de literatura em 2015. O livro foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

[CILEIDE ALVES]

O que eu entendi foi o seguinte: lá na na Rússia as autoridades esconderam da população. O regime russo, aquela coisa de não ser transparente, não criar um pânico de que poderia ser um ataque nuclear, que a Rússia estava sendo vítima dos inimigos de fora. Quer dizer, não se confiava no governo lá por conta disso. E aqui a gente estava saindo de um governo ditatorial. A mídia ainda estava conquistando essa nova fase do regime democrático. Mas havia uma suspeita muito grande de que o governo estava mentindo pra gente.

[LOCUÇÃO]

E aí quando a Cileide fala isso, eu fico tentando imaginar, e queria que você tentasse imaginar isso junto comigo, como devia ser passar o dia inteiro cobrindo esse assunto em contato com aquelas pessoas, indo ao hospital, por exemplo, onde estava o Devair, onde tava a Gabriela, os funcionários do ferro velho, e depois no fim do dia chegar em casa sem ter certeza absoluta sobre qual era a sua condição de saúde e o risco de contaminação. Ainda mais tendo em casa um filho de 3 anos de idade.

[CILEIDE ALVES]

Eu me lembro que eu saía do trabalho no fim do dia, eu chegava em casa, eu ficava pensando assim: eu tinha que acalmar a minha família, porque as informações, a boataria, né, era muito grande. Que estava todo mundo contaminado, que tinha ido pras árvores, que tinha caído no lençol freático, que a cidade estava toda tomando água contaminada. E começaram a surgir informações porque uma casa gera lixo, pessoas chegam e visitam uma casa levam coisas pra outra casa. Os dois rapazes que abriram a cápsula eram catadores de papel. Quantas pessoas tocaram nisso? Os objetos que foram contaminados, pra onde foram esses objetos? Os animais que tiveram contato com esses objetos, pássaros que podem ter pousado nos lugares contaminados. Então virou uma paranoia na cidade. Por isso que eu considero essa foi a cobertura mais difícil que eu já fiz na minha vida. Porque em geral você vai fazer uma cobertura e quando começa aquilo você não sabe o que aconteceu, mas você vai apurando e você vai descobrindo né? Naquela época não. Porque ninguém sabia nada de radioatividade, ninguém sabia nada de Césio, ninguém sabia nada de átomo, de núcleo, ninguém sabia de física. E os próprios físicos daqui não tinham experiência nisso. Ninguém tinha. Havia um sentimento naquele momento de rejeição, de preconceito. E a gente tinha o cuidado de não transparecer isso, né, que as coisas eram muito graves. Ao mesmo tempo a gente sabia que tinha alguns cuidados que você tinha que tomar. Então, pra entrar nas áreas contaminadas, a gente só entrava se usasse a roupa especial, que eram aqueles macacões, de um tecido, um plástico fino, que você usava aquilo com botas e máscara. Aí nas áreas contaminadas a gente entrava assim.

[RODRIGO ALVES]

Você até guardou um, não foi? Eu lembro de uma foto sua.

[CILEIDE ALVES]

Guardei, guardei. Era um macacão. Tinha um de tecido que esse eram só os técnicos que usavam. Os que a gente usava eram descartáveis. Eu fazia uma coisa que eu ouvia quando a gente fazia matéria que era recomendado pras pessoas que tinham contaminação leve: eu tomava banho e depois eu me enxaguava com vinagre. Água com vinagre. Que era uma forma de descontaminação dessas pequenas doses. Então eu cheguei a fazer isso várias vezes, várias vezes. E eu chegava em casa com essa dúvida: será que eu posso pegar meu filho? Será que eu posso abraçar meu filho? E aí a minha família, minhas irmãs, minha mãe, ficava todo mundo com medo, e eu tinha que acalmá-las. Eu tinha que dizer pra elas que estava tudo sob controle. Mas ao mesmo tempo ninguém acreditava que estava sob controle.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Repórter: As crianças não conseguiam entender por que tantas medições por dia. Ou tantos banhos com sabão e vinagre que ajudam na descontaminação.

- Repórter: Quer voltar para casa? Tá com saudade do resto da família?

- Criança: (chora)

- Repórter: Ô, não chora…

[LOCUÇÃO]

E tanto não tava sob controle que o pânico tomou conta de Goiânia e criou umas cenas impressionantes como as filas gigantescas no Estádio Olímpico, que recebeu mais de 112 mil pessoas pra que a Cnen pudesse monitorar os níveis de radioatividade usando aquele medidor em cada uma das pessoas pra ver quem tava contaminado ou não.

[CILEIDE ALVES]

Como as pessoas foram levadas lá pro ginásio Rio Vermelho, que era no setor Aeroporto, do lado tinha esse estádio de futebol. Porque são bairros populosos. Nós estamos falando do setor Aeroporto que é ao lado do Centro, que é na zona central de Goiânia. Então você imagina o tanto de gente que mora nessa região. E aí todas as pessoas que moravam nessas imediações naquele primeiro momento do pânico elas achavam que estariam contaminadas. Porque tem um tio, um vizinho que foi lá, né? E por aí. Tinha muitas histórias, por exemplo, tinha um garçom que morava lá do lado que ganhou uma pedrinha, pôs a pedrinha no papel, pôs no bolso e foi pra casa. Ele era garçom do Palácio das Esmeraldas, depois ele foi trabalhar no Palácio das Esmeraldas. Então você encontrava muitas histórias como essas.

[ÁUDIO REPORTAGEM]

- Mulher: O contato que eu tive foi à distância de três metros. Eu vi na televisão que o negócio é grave. Tô tentando ser internada, porque minhas vistas estão doendo bastante. Esse olho meu aqui tá ardendo demais. Minha veia baixou, tô me sentindo mal.

[CILEIDE ALVES]

E criou pânico. E aí as pessoas das imediações todas do setor Aeroporto, do bairro popular, Centro, centenas de milhares de pessoas lá em pânico, com medo de estarem com algum tipo de contaminação.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Desses 112 mil moradores monitorados, 271 tavam contaminados. Muitos tinham rastros do Césio na roupa, no sapato. E vários tiveram contaminação interna, no organismo. No dia 1º de outubro, era o terceiro, quarto dia de cobertura, 14 pessoas que estavam em estado mais grave foram transferidas pro Rio de Janeiro e internadas no Hospital Naval Marcílio Dias. Quatro dessas pessoas morreram. Foram as únicas mortes naquele período com ligação direta e imediata com o caso. Porque mais de cem pessoas morreram nos anos seguintes por causa da contaminação, com câncer ou com outros problemas de saúde. Por exemplo, o Devair, o dono do ferro velho…

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Devair: Eu amava a pedra. Cansei de tomar cerveja com o copo em cima daquela pedra. Convivemos com essa pedra oito dias.

[LOCUÇÃO]

Ele teve muito contato com a substância e recebeu muita radiação, mas ele não morreu imediatamente. Só que ele sofreu muitos efeitos: perdeu todo o cabelo, teve problemas em vários órgãos, contraiu um câncer. E ele teve um problema que atingiu muita gente naquela época, que foi o dano psicológico. O Devair ficou muito culpado por ter mandado abrir a cápsula. Virou alcoólatra e morreu de cirrose, sete anos depois, em 94. O Ivo, o irmão dele, entrou em depressão, virou um fumante compulsivo, ele fumava seis maços de cigarro por dia. E morreu de enfisema pulmonar 16 anos depois. As quatro pessoas que morreram naquele fim de outubro de 87 foram: os dois funcionários do ferro velho, o Israel Batista dos Santos, de 22 anos, e o Admilson Alves de Souza, de 18 anos. E as primeiras mortes no dia 23 de outubro foram da Maria Gabriela, a esposa do Devair, de 37 anos, e a menina Leide das Neves, de 6 anos, que era sobrinha do Devair e da Gabriela, filha do Ivo. A Leide foi o símbolo mais doloroso daquela tragédia.

[MÚSICA]

[CILEIDE ALVES]

Uma coisa que me impressiona muito, que eu nunca esqueço, é da mãe da Leide, a Lourdes. Tem uma foto da Leide, que é a foto mais conhecida, é ela com um bichinho, parece, um brinquedinho assim, que é a única foto da Leide que tem. Todo mundo que vai contar esse acidente ilustra com essa mesma foto. E a mãe da Leide me disse que quando fecharam a casa dela e falaram que ela tinha que sair da casa, que estava interditada, eles não deixaram ela pegar nada, absolutamente nada. Ela pegou escondido essa foto da Leide. Porque ela não podia ficar sem nada.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Odete: Na hora que eu cheguei lá ela falou: Titia, vem ver a pedrinha lumiante que o papai trouxe.

[LOCUÇÃO]

Essa voz é da Odete, tia da Leide e cunhada do Ivo, em entrevista à Globo.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Odete: Eu entrei, ela mesma apagou a luz. Na hora que eu entrei aquilo brilhava.

[LOCUÇÃO]

A Odete também tem marcas do Césio até hoje, na mão e no pescoço.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Odete: O Ivo falou assim: vou fazer a Odete ficar bonita. Somente o papel que ele trouxe ele passou no meu pescoço. Passou. Isso aqui ficou na carne viva.

[CILEIDE ALVES]

A vida dessas famílias todas foram transformadas por algo invisível. Então assim, uma coisa que não me sai da cabeça são essas pessoas, a imagem delas, né? E aí tem um depoimento de uma mulher no livro sobre Chernobyl. E ela fala assim, que ela acorda de manhã e olha assim, tava bonito o pomar dela, muito bonito. A horta aliás, a horta bonita, tomates, pepinos e dois cantos tinha uma coisa azul, completamente azul, muito bonita. Era o Césio. Lá eles não sabiam. E aí ela conta que de noite, de tardezinha choveu. Com a chuva, choveu muito forte, quando parou a chuva que eles chegaram lá, o azul tinha sumido. Ou seja, a terra tinha, a água tinha levado pra terra. E aí elas comeram essas frutas. É o caso da Leide aqui. Quer dizer, ela se encantou pelo azul, ela achou bonito, ela pegou o ovo, ela brincou com esse azul, era fosforescente, ela punha no escuro, entrava debaixo da cama com a mãozinha, apagava a luz pra ver aquilo, né? Então assim, era muito bonito. Da mesma forma em Chernobyl, era bonito, não tinha destruição. A imagem que a gente tem da coisa que faz mal é a coisa que destrói, né? O belo não.

[LOCUÇÃO]

As mortes ainda tiveram uma dose extra de tristeza no enterro da Leide e da Gabriela. Porque os moradores, naquele tumulto de desinformação, ninguém sabia direito o que estava acontecendo, o que podia acontecer, ninguém queria que elas fossem enterradas ali. Por mais que o caixão fosse de chumbo, lacrado, mas muita gente tinha medo de contaminação na área ali, né? E a reação foi um espetáculo surreal.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

Som de confusão e gritaria no enterro.

[CILEIDE ALVES]

Olha, eu acho que esse foi um dos dias mais difíceis, mais tristes. Mais tristes, com certeza eu não me lembro de nada tão triste. Os corpos chegaram no aeroporto de Goiânia. Só os caixões já é muito triste, porque são caixões muito grandes, são caixões de chumbo né? Eles são muito pesados, então precisa de de guindaste pra tirá-los, todo aquele que já é muito triste. E aí o cortejo foi do aeroporto até o cemitério. Deve dar aí, sei lá, uns 15 quilômetros, 10 quilômetros de distância. E no caminho, chegando no bairro onde fica o cemitério, já havia manifestação dos moradores. E tinha um vereador na época aqui em Goiânia, ele se chama José Nelto. Ele era vereador representante da região, e esses políticos populistas que ficam ao lado do povo e não medem as consequências. E o povo já tinha dito que não aceitaria que elas fossem enterradas lá. E aí uma imagem que não me sai da cabeça, já dentro do cemitério, a família dos mortos, a família da Gabriela, a família da Leide, a mãe da Leide chorando, todo mundo em volta ali. E os moradores junto com esse vereador pegando coisas de cimento, cruzes, essa é uma imagem que ficou muito na minha cabeça. Eles pegavam cruzes de cimento que estavam lá pra colocar nos túmulos e jogando em direção ao caixão.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Repórter: A ambulância que trazia os caixões foi alvejada por pedras até atingir a área dos túmulos.

[CILEIDE ALVES]

Essa é a imagem mais triste, não tinha como você não sentir aquilo, sabe? Você vê, as pessoas são solidárias no câncer, né? Essa piada que se faz, né? Então assim, na morte todo mundo é solidário, as pessoas respeitam o corpo do morto, a dor da família. Ali não.

[MÚSICA]

[CILEIDE ALVES]

Tudo que estava nas casas teve que ser enterrado. E aquilo foi colocado em contêineres, né? Os contêineres foram levados pra essa área de Abadia de Goiás. Abadia hoje é um município, mas na época era distrito de Goiânia ainda. E aí teve que fazer um segredo. O governo tinha que escolher uma área, mas não podia contar, porque ninguém queria aquele lixo. Ninguém queria. E aí eu me lembro que a imprensa foi convidada pra ir na coletiva na prefeitura de Goiânia às três horas da tarde, que o prefeito ia anunciar a área. Tinha um produtor da Rede Globo que estava aqui, ele conseguiu com uma fonte dele o nome do lugar. E aí nós chegamos lá na prefeitura, o prefeito falou: não vou falar pra vocês. Porque ele não queria que ninguém ficasse sabendo antes pra não ter problema. Nós vamos todos juntos pro local onde vai ser o depósito. Aí saímos em comboio, a imprensa toda com a polícia, o prefeito. Esse produtor da Rede Globo descobriu e chegou lá antes. Chegou lá antes e contou. Na hora que o comboio chegou já tinha uma manifestação lá.

[LOCUÇÃO]

É estranho imaginar esse depósito imenso em Abadia com mais de 13 toneladas de lixo atômico. Pra você ter uma ideia do tamanho, são 1.200 caixas e 2.900 tambores com o material. Isso tudo foi colocado dentro de 14 grandes contêineres totalmente lacrados. É uma montanha artificial revestida com uma parede de concreto e chumbo com um metro de espessura. Porque esse material radioativo demora quase 200 anos pra ficar totalmente seguro pras pessoas e pro meio ambiente.

[EFEITO SONORO]

- Cymball, prato de bateria

[CILEIDE ALVES]

A última lembrança, engraçado isso, lembrança que eu tenho de cobertura do acidente com o Césio porque me marcou já foi de 88. Eu me lembro que eu fui lá pro depósito de rejeitos radioativos em Abadia, fiz uma reportagem lá, andei no meio dos daqueles contêineres onde estava o lixo radioativo. E à tarde eu tinha uma consulta médica, e à tarde eu fiquei sabendo que eu tava grávida. E aí eu me lembro, nesse dia eu me lembro de ficar preocupada. E aí eu procurei a Cnen, que tinha montado um escritório lá na rua 57, ao lado da casa onde foi aberta a cápsula. E pela primeira vez eu fiz um exame de corpo inteiro desses pra saber se você está contaminada. Porque como eu estava grávida eu falei: nossa, será, né? Agora eu tenho que ter um pouco mais cuidado. Foi a última lembrança que eu tenho, mas isso já tinha passado dois anos, né, quase dois anos praticamente do início do acidente.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Nove anos depois do caso, cinco pessoas foram condenadas pela Justiça. Três médicos que eram responsáveis pela clínica desativada, o Carlos Bezerrio, o Orlando Teixeira e a Criseide Dourado. E o físico Flamarion Goulart, que era consultor da clínica. Esses quatro tiveram a sentença de três anos e dois meses em regime aberto, mas no ano seguinte a pena foi convertida em serviços comunitários. O quinto condenado foi o dono do prédio, o Amaurilo Monteiro de Oliveira, que pegou um ano e dois meses, mas depois conseguiu suspender a pena. Em 1998 as cinco penas foram extintas. E numa reportagem do Fantástico em 2017, quando o caso fez 30 anos, o repórter Álvaro Pereira Júnior entrevistou o físico Flamarion Goulart. E ele deu uma versão diferente do que se sabia.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Álvaro Pereira Júnior: O senhor sabia que aquele equipamento estava largado lá?

- Flamarion Goulart: E se eu disser pra você que não estava largado lá?

- Álvaro Pereira Júnior: Então eu gostaria muito de saber como é que estava.

- Flamarion Goulart: Pois é. Aquele equipamento na realidade não estava largado lá. Aquele equipamento quando foi desmontada a clínica, aquele cabeçote foi lacrado e foi transferido pro Hospital Araújo Jorge, no bunker do acelerador que ia ser montado aqui.

- Álvaro Pereira Júnior: Só pra eu entender, doutor Flamarion. Então o que o senhor está me dizendo é: por alguma razão esse equipamento foi trazido pra um local protegido aqui do hospital?

- Flamarion Goulart: Exato.

- Álvaro Pereira Júnior: E acabou voltando pra clínica.

- Flamarion Goulart: Acabou voltando pra clínica.

- Álvaro Pereira Júnior: O senhor não sabe explicar por quê?

- Flamarion Goulart: Não. Não sei.

- Álvaro Pereira Júnior (locução): O físico diz que viu a cápsula de Césio no Hospital Araújo Jorge.

- Flamarion Goulart: O doutor Bezerrio sabia muito bem do risco daquele equipamento. E pro doutor Bezerrio, esse equipamento estava aqui.

- Álvaro Pereira Júnior: E como é que os catadores acharam o equipamento?

- Flamarion Goulart: Porque alguém pegou aqui e levou pra lá.

- Álvaro Pereira Júnior (locução): Quem? O físico não explica.

- Flamarion Goulart: Não sei quem e como levaram. Mas que isso aconteceu, aconteceu.

[LOCUÇÃO]

Como os outros envolvidos negaram essa informação ou não se pronunciaram, nada mudou de lá pra cá. E além disso o caso já tava prescrito desde 2005. Até hoje o Odesson Alves Ferreira, o irmão do Devair, aquele que esfregou o pó na palma da mão, lembra, ele é presidente da Associação de Vítimas do Césio.

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Odesson: O acidente com o Césio não pode cair no esquecimento. A sociedade precisa sempre estar lembrando disso pra evitar que outros aconteçam.

[LOCUÇÃO]

Quem participou daquela cobertura também não esquece. E a Cileide Alves, que ajudou a gente a lembrar e a entender melhor todo esse caso, ela não só guarda lições daquela época, como espera que o país aprenda com aquilo e não repita esses erros.

[CILEIDE ALVES]

Olha, eu acho que essa cobertura me fez pensar em muitas questões. Primeiro na responsabilidade que a gente tem com aquilo que divulga. Eu chegava no fim do dia, eu ficava muito preocupada de como as pessoas iam receber aquilo, como é que as pessoas iam perceber aquilo. E a segunda coisa que me fez pensar muito é a certeza da apuração. Acho que foi aí que eu aprendi que a apuração é fundamental. Porque a gente estava no meio teoricamente das pessoas mais paradas pra dar aquelas informações, que eram médicos, físicos nucleares, gente de toda parte. Vinha gente do mundo todo pra cá. Eu todo dia cobria físico da Inglaterra, físico da Alemanha, físico de Chernobyl, russos. Mas assim, cada um tinha uma opinião. O que a gente tinha na realidade era mais opinião que informação. Eu acho que foi ali que eu aprendi na prática o que é a responsabilidade de você checar e saber como divulgar a informação. Porque muitas vezes você até checa, mas divulga de qualquer jeito, né? E a forma de divulgar era muito relevante, muito.

[RODRIGO ALVES]

Perfeito. Bom, Cileide, você deu uma aula. Queria te agradecer demais pelo papo, acho que foi muito esclarecedor. Obrigado demais por dividir essa experiência com a gente.

[CILEIDE ALVES]

De nada. Tomara que eu esteja ajudando que essa história fique registrada. Eu acho que aconteceu, é uma coisa que a humanidade não tem como impedir que aconteça. Mas eu acho que, já que aconteceu, a gente tem que aprender com isso. E me preocupa muito isso hoje, sabe? O que é que o Brasil aprendeu com esse acidente? O que a gente faz melhor? O que a gente faz por essas vítimas aqui? Eu percebi muito lendo esse livro que eu falei, As Vozes de Chernobyl, que as pessoas, depois que passa, elas se sentem abandonadas e sós. Porque o tempo passa, cada um vai cuidar das suas vidas, e elas não. Elas não tem como se dissociar disso e mudar a vida delas. Elas ficam pra sempre. A vida delas é muito incerta. Você vai conversar com elas, todas elas têm uma reclamação de algum tipo de doença na família. Depressão, algum tipo de câncer, cada um tem uma história de que morreu um parente de câncer. O setor público, as autoridades, a academia, a sociedade de um modo geral não soube como cuidar dessas pessoas, sabe? Eu acho que é o que é pior. Até hoje a gente vê eventualmente uma contenção de custos, e a gente descobre que falta remédio, que a Fundação Leide das Neves, acho que hoje mudou o nome, não me lembro mais, mas que não tem recursos, que a aposentadoria foi cortada. Ainda tem trabalhadores reivindicando na Justiça, né? Eu acho que a gente não aprendeu a cuidar das pessoas. É isso que me preocupa. E quando eu conto essa história, eu espero que mais pessoas ouçam isso, e que a gente aprenda a se preocupar com essas pessoas.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Obrigado, Cileide, por dividir esses bastidores com a gente. E você que ouviu até aqui, se você achou o tema interessante e acha que mais gente pode gostar, indica o podcast pros seus amigos, jornalistas, estudantes, ou quem gosta de histórias desse tipo. E procura mais sobre esse tema, tem muita coisa disponível. A matéria do Álvaro Pereira Júnior, por exemplo, tá no Globo Play, tem muita coisa no YouTube, documentários, vídeos, reportagens da TV Anhanguera, a gente ouviu trechos de algumas aqui. Dá pra achar inclusive depoimentos de outros jornalistas que viveram aquela cobertura. Uma cobertura incomum, cheia de receios, e cheia de dúvidas.

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

No próximo episódio da série Memórias…

[ÁUDIO DE REPORTAGEM]

- Ari Peixoto: A confusão é muito grande aqui, e a gente vê a imprensa toda está aqui na porta do ônibus. Os policiais levantam as armas para o alto…

[LOCUÇÃO]

A cobertura do sequestro do Ônibus 174 no Rio de Janeiro em 12 de junho de 2000. E a nossa convidada é a jornalista Mariana Gross.

[MARIANA GROSS]

Um tema que marcou a minha carreira, realmente. Ali eu entendi o que era ser repórter de fato. Já tinha, claro, feito outras reportagens, mas ali eu entendi o cerne da questão, sabe?

[MÚSICA]

[LOCUÇÃO]

Memórias é uma série especial do podcast Vida de Jornalista publicada originalmente em 2019 com oito episódios. Esses episódios tão sendo republicados agora, um por semana, com o áudio remasterizado e as locuções regravadas com uma qualidade melhor, pra ficar tudo lindão. Em janeiro de 2022 começa uma nova leva de episódios inéditos. Até lá, me conta o que você acha da série. O Vida tá no Twitter e no Instagram com a mesma @, vida_jornalista. Eu sou o Rodrigo Alves, e faço sozinho todas as etapas da produção: a pauta, a pesquisa, a entrevista, o roteiro, a locução, a edição, a sonorização, as artes, a divulgação. E o Vida não tem patrocínio, é um podcast mantido apenas pelos ouvintes. Então se você quiser e puder apoiar, é muito importante. É só buscar o nome do podcast no Catarse, no PicPay ou na Orelo. Lá você encontra os planos mensais a partir de 5 reais. Todos os assinantes recebem áudios de bastidores dos episódios, e a partir do plano de 10 reais você pode entrar no grupo de whatsapp do Vida. Procura também os outros podcasts da Rádio Guarda-Chuva: o Põe na Estante, a Rádio Escafandro, o Finitude, o Dissidentes, o Afluente e o Pauta Pública. Espalha a série Memórias por aí, e a gente se fala de novo na próxima semana. Um beijo, um abraço, e até mais.

[FIM DO EPISÓDIO]

Diga o que você achou da transcrição: podcastvidadejornalista@gmail.com ou @vida_jornalista no Twitter e no Instagram. Obrigado!

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